Por vezes vamos a um consultório
médico e nos é prescrito um tratamento a ser seguido. Como confiar na segurança
daquele medicamento? Como avaliar a chance obter uma melhora com
ele ou não? Muitos dos problemas que nos impossibilitam de tomar boas decisões
no cuidado em saúde ocorrem por pensarmos dicotomicamente: um
medicamento/tratamento ou faz bem ou faz mal para um doente. Entretanto, quando se tratam de seres vivos,
raramente temos essa separação tão estrita. Dessa forma, convém modularmos a
maneira de pensar os tratamentos em saúde: em vez de afirmar “isso funciona”,
“isso não funciona”, é preciso pensar em graus e variações das chances de
melhora, dos riscos do tratamento e dos riscos dos efeitos colaterais tanto advindos do uso do remédio ou os padecimentos decorrentes em não usá-lo.
Quando um
medicamento novo é lançado, costuma-se informar a porcentagem de
benefício da atuação daquele medicamento em determinada doença (e.g.
comprimidos que prometem prevenir a ocorrência de eventos cardíacos no futuro).
Entretanto, quase nunca são anunciadas as nuances quanto ao real benefício do
tratamento frente a outras iniciativas como mudança de hábitos, por exemplo. Dessa
forma, omite-se do público e mesmo de alguns profissionais médicos, a
verdadeira faceta do tratamento farmacológico, especialmente para condições
crônicas: nunca 100% dos usuários terão benefício mesmo se a droga for adequada
e eficiente.
Exemplo:
imagine que você entrou no site da American Heart Association (AHA)
e de posse de seus exames de sangue, valor de peso, altura etc., preencheu o
formulário que calcula o risco de sofrer um ataque cardíaco em 1 ano. Digamos
que o programa calculou probabilidade 50% de ocorrer um ataque cardíaco dentro
dos próximos 365 dias. Eis que chega a suas mãos um anúncio de um medicamento
que reduz esse risco para 25%. Uma vez que a probabilidade foi de 50% para 25%,
o medicamento diminuiu seu risco de evento cardiovascular pela metade. Ótimo
remédio, não é? Com certeza!
Bom,
digamos agora que outra calculadora de risco do mesmo tipo do AHA diz
que você possui probabilidade de ter câncer no cérebro de 0,5% no próximo ano.
Da mesma forma, você descobre que há uma nova droga que diminui esse risco para
0,25%. Novamente, a terapia medicamentosa diminuiria pela metade seu risco de
ter o câncer. O que você acharia desse remédio?
Nos dois
casos, o medicamento diminui pela metade seu risco de morrer. A essa redução
damos o nome de Risco Relativo (RR):
Se as
drogas forem baratas ou até de graça, qualquer uma das duas situações acima de
redução de riscos valeria a pena, certo? Claro!
Agora, se
o custo delas não for baixo ou há algum efeito colateral importante, os dois
exemplos são equivalentes? Claro que não!
Ora, o
Risco Antigo de ter um evento cardíaco era de 50% (50 a cada 100 pessoas
morrem), enquanto que o Risco Antigo de desenvolver o câncer no cérebro, apenas
0,5% (5 a cada 1000 pessoas morrem). Cenários totalmente diferentes,
especialmente se uma das drogas for perigosa ou cara. Este exemplo mostra o
quanto esse valor de Risco Relativo (RR) é de certa maneira inútil. No entanto,
esse é o valor mais comumente reportado em anúncios sobre novos medicamentos ou
tratamentos. E o motivo é claro: quase sempre o RR atribui um efeito mais
impressionante ao novo tratamento divulgado. O que deveria nos preocupar na
realidade é outra medida: Risco Absoluto (RA ou AR em inglês). RA, como pode ser observado na expressão a seguir, é de fato a redução de risco que o suposto tratamento, quando usado adequadamente, confere ao paciente:
Exemplo do Câncer no
Cérebro:
Valores totalmente diferentes! Ou seja, com um remédio temos uma redução de risco de 25% a partir de seu uso, enquanto que no outro, 0,25%, mesmo ambos tendo o mesmo valor de RR (50%). Ainda assim, normalmente a divulgação para informar os médicos, para popularizar e vender tais medicamentos se faz (injustamente) através do valor de RR e não de RA.
Entendendo o Número Necessário para Tratar (NNT) e o Número Necessário
para causar Danos (NND)
Um valor
interessante na perspectiva da pessoa sujeita a intervenção, ou seja, o
paciente a tomar o medicamento, é conhecido como Número Necessário para Tratar
(NNT). Através do NNT, avaliamos quantos pacientes precisamos dar o medicamento
ou realizar a intervenção para que 1 se beneficie. Esse valor é calculado
fazendo o inverso do valor de RA:
Interpretando
esses valores, para o caso do medicamento que previne ataque cardíaco, teremos
de tratar corretamente 4 pacientes para que 1 receba o benefício de evitar o
evento cardíaco. Ou seja, os outros 3 pacientes não recebem NENHUM benefício
com esse tratamento. Interessante observar que essa droga, mesmo com 3 pessoas
não se beneficiando em nada pelo seu uso, tem valor de NNT muito menor que a
média dos medicamentos de verdade. Normalmente os NNTs dos melhores
medicamentos que temos atualmente, quando comparados com placebo, são maiores.
Significando que sempre estamos tratando muitos, para poucos receberem o
benefício. Agora, e o caso da droga para prevenir câncer no cérebro? Precisamos
tratar 400 para que 1 receba o benefício. 399 pessoas não se beneficiam em
nada! O leitor pode até achar justo ambos os valores de benefício, afinal de
contas o desfecho – ataque cardíaco ou câncer no cérebro nos próximos 365 dias
– nos dois casos são bem dramáticos, podendo levar os pacientes a morte. Entretanto,
esse raciocínio só seria válido se não houvesse nenhum efeito colateral. Mas
como sabemos, TODOS medicamentos tem alguma reação adversa, isso sem falar do
seu custo. Foi pensando em quantificar o dano de um efeito colateral que se
criou a variável Número Necessário para causar Dano (NND, ou NNH em inglês).
A ideia é
bem semelhante, o NND explicita a quantidade de pessoas tratadas que geram 1
efeito danoso. Exemplo: um estudo avaliou um grupo de pessoas sujeitas a uma
infecção bacteriana. Quando avaliados os efeitos colaterais, os pesquisadores
observaram que 20% dos pacientes que tomaram o antibiótico, tiveram diarreia.
Em contra partida, dos que não tomaram o medicamento, 10% apenas tiveram
diarreia. Se observarmos novamente o RR para essa droga, teremos:
No entanto,
observando o valor de Risco Absoluto, teremos:
Da
mesma maneira, podemos calcular o NND:
,
ou seja, a cada 10 pacientes que tratamos com o antibiótico, 1 terá diarreia.
Para
exemplificar com valores reais de NNT, vamos analisar o índice para o uso de
Aspirina na prevenção de um primeiro evento cardioisquêmico (ataque cardíaco)
ou encefaloisquêmico (AVE). Em uma meta-análise publicada na revista Lancet em
2009, correspondendo ao melhor estudo sobre o assunto até o momento, foram
analisados pacientes que nunca tiveram eventos cardiovasculares, mas que
possuíam pelo menos um fator de risco para doença cardíaca como hipertensão
arterial sistêmica. Chegaram a conclusão que, no caso de uso de aspirina em
pacientes que nunca tiveram eventos vasculares prévios, o NNT=1667. Isso mesmo:
para 1 única pessoa se beneficiar com a prevenção do evento cardiovascular,
este que se beneficiou e mais 1666 indivíduos deverão tomar 1 comprimido de
aspirina por dia durante 1 ano inteiro! Pensando nesse valor de benefício, qual
o efeito colateral mais evidente do uso da aspirina? Sangramentos espontâneos!
Dessa maneira, a pergunta que fica é: vale a pena tratar tantas pessoas que
nunca tiveram qualquer evento vascular? É provável que tendo este valor de NNT para aspirina em mente, uma pessoa decida discutir melhor com seu médico se de fato vale a pena iniciar a terapêutica com o tal fármaco.
Uma ponderação
importante é na verdade um alerta: quando estiverem interessados em ler um
estudo na íntegra, atentem sempre para o escopo de pacientes do estudo. Este
tipo de informação costuma ser encontrada na parte que o autor do trabalho
descreve a Metodologia (sabidamente a parte mais importante de todo relato de
pesquisa). No caso do nosso artigo do The Lancet, apesar de terem pelo menos um
fator de risco para doença cardíaca (por exemplo, Hipertesão Arterial Sistêmica),
escolheram APENAS aqueles que não tiveram nenhum evento cardíaco prévio. Não
torçam o nariz quando virem prescrições de aspirina para familiares, eles podem
ter tido algum evento cardiovascular prévio e você nunca soube. Para este
escopo de pacientes com evento cardiovascular comprovado, que foram
hospitalizados por tal motivo, o estudo ISIS-2 chegou a um NNT de 42 na
prevenção de morte por Infarto Agudo do Miocárdio um mês após internação.
Significando que, para 41 pacientes que tomaram diariamente e não se beneficiam
em nada, apenas 1 tem o efeito de prevenção esperado no intervalo de tempo
considerado no estudo (ISIS-2).
Através desses
índices (RA, RR, NNT, NND) e dos exemplos citados, pode-se concluir (i) tratamos prescritos compreendem, de partida, uma margem de pessoas que não
serão beneficiadas com ele, notadamente em doenças crônicas, quanto mais a alteração apresentada
por um paciente for próxima do limite de definição de normalidade, menor será o
benefício; (ii) produtores de medicamentos, ou mesmo pesquisadores mal intencionados podem informar um risco relativo que impressiona mais que o risco absoluto de
fato, o que eventualmente leva a consequências como o investimento de grandes quantias
de dinheiro em tratamentos pouco efetivos ou mesmo a efeitos colaterais graves.
Vale a
pena pensar sobre as possibilidades de tratamento existentes e discuti-las com
o profissional médico. Peça para que ele mostre as possibilidades existentes a
você e quais os riscos dos vários tratamentos. Assim, você terá participação na
decisão de seu tratamento e poderá exercer uma autonomia consciente e
esclarecida sobre seu corpo e sua saúde.
Referências
- Antithrombotic Trialists’ (ATT) Collaboration. (2009). Aspirin in the primary and secondary prevention of vascular disease: collaborative meta-analysis of individual participant data from randomised trials. Lancet, 373(9678), 1849–1860.
- ISIS-2 (Second international study of infarct survival) Collaborative group, randomised trial of intravenous streptokinase, oral aspirin, both, or neither among 17.187 cases of suspected acute myocardial infarction: ISIS-2, The Lancet, Volume 332, Issue 8607, 13 August 1988, Pages 349-360, ISSN 0140-6736.
"Este texto de divulgação foi escrito por Ícaro Salerno Fernandes, bacharel em Física e estudante de medicina, e publicado neste blog em março de 2016. Copiar ou reproduzir parte ou o todo do texto sem citar a fonte original constitui plágio e pode ser punido por lei".