domingo, 28 de fevereiro de 2016

Tratamentos não tão seguros

Por Ícaro Salerno Fernandes

Por vezes vamos a um consultório médico e nos é prescrito um tratamento a ser seguido. Como confiar na segurança daquele medicamento? Como avaliar a chance obter uma melhora com ele ou não? Muitos dos problemas que nos impossibilitam de tomar boas decisões no cuidado em saúde ocorrem por pensarmos dicotomicamente: um medicamento/tratamento ou faz bem ou faz mal para um doente. Entretanto, quando se tratam de seres vivos, raramente temos essa separação tão estrita. Dessa forma, convém modularmos a maneira de pensar os tratamentos em saúde: em vez de afirmar “isso funciona”, “isso não funciona”, é preciso pensar em graus e variações das chances de melhora, dos riscos do tratamento e dos riscos dos efeitos colaterais tanto advindos do uso do remédio ou os padecimentos decorrentes em não usá-lo.
Quando um medicamento novo é lançado, costuma-se informar a porcentagem de benefício da atuação daquele medicamento em determinada doença (e.g. comprimidos que prometem prevenir a ocorrência de eventos cardíacos no futuro). Entretanto, quase nunca são anunciadas as nuances quanto ao real benefício do tratamento frente a outras iniciativas como mudança de hábitos, por exemplo. Dessa forma, omite-se do público e mesmo de alguns profissionais médicos, a verdadeira faceta do tratamento farmacológico, especialmente para condições crônicas: nunca 100% dos usuários terão benefício mesmo se a droga for adequada e eficiente.


Entendendo o Risco Relativo e o Risco Absoluto


Exemplo: imagine que você entrou no site da American Heart Association (AHA) e de posse de seus exames de sangue, valor de peso, altura etc., preencheu o formulário que calcula o risco de sofrer um ataque cardíaco em 1 ano. Digamos que o programa calculou probabilidade 50% de ocorrer um ataque cardíaco dentro dos próximos 365 dias. Eis que chega a suas mãos um anúncio de um medicamento que reduz esse risco para 25%. Uma vez que a probabilidade foi de 50% para 25%, o medicamento diminuiu seu risco de evento cardiovascular pela metade. Ótimo remédio, não é? Com certeza!
 Bom, digamos agora que outra calculadora de risco do mesmo tipo do AHA diz que você possui probabilidade de ter câncer no cérebro de 0,5% no próximo ano. Da mesma forma, você descobre que há uma nova droga que diminui esse risco para 0,25%. Novamente, a terapia medicamentosa diminuiria pela metade seu risco de ter o câncer. O que você acharia desse remédio?
 Nos dois casos, o medicamento diminui pela metade seu risco de morrer. A essa redução damos o nome de Risco Relativo (RR):









Exemplo do Ataque Cardíaco:





Exemplo do Câncer no Cérebro:







Se as drogas forem baratas ou até de graça, qualquer uma das duas situações acima de redução de riscos valeria a pena, certo? Claro!
 Agora, se o custo delas não for baixo ou há algum efeito colateral importante, os dois exemplos são equivalentes? Claro que não!
 Ora, o Risco Antigo de ter um evento cardíaco era de 50% (50 a cada 100 pessoas morrem), enquanto que o Risco Antigo de desenvolver o câncer no cérebro, apenas 0,5% (5 a cada 1000 pessoas morrem). Cenários totalmente diferentes, especialmente se uma das drogas for perigosa ou cara. Este exemplo mostra o quanto esse valor de Risco Relativo (RR) é de certa maneira inútil. No entanto, esse é o valor mais comumente reportado em anúncios sobre novos medicamentos ou tratamentos. E o motivo é claro: quase sempre o RR atribui um efeito mais impressionante ao novo tratamento divulgado. O que deveria nos preocupar na realidade é outra medida: Risco Absoluto (RA ou AR em inglês). RA, como pode ser observado na expressão a seguir, é de fato a redução de risco que o suposto tratamento, quando usado adequadamente, confere ao paciente:





Exemplo do Ataque Cardíaco:






Exemplo do Câncer no Cérebro:





Valores totalmente diferentes! Ou seja, com um remédio temos uma redução de risco de 25% a partir de seu uso, enquanto que no outro, 0,25%, mesmo ambos tendo o mesmo valor de RR (50%). Ainda assim, normalmente a divulgação  para informar os médicos, para popularizar e vender tais medicamentos se faz (injustamente) através do valor de RR e não de RA.


Entendendo o Número Necessário para Tratar (NNT) e o Número Necessário para causar Danos (NND)


Um valor interessante na perspectiva da pessoa sujeita a intervenção, ou seja, o paciente a tomar o medicamento, é conhecido como Número Necessário para Tratar (NNT). Através do NNT, avaliamos quantos pacientes precisamos dar o medicamento ou realizar a intervenção para que 1 se beneficie. Esse valor é calculado fazendo o inverso do valor de RA:











Exemplo do Ataque Cardíaco:






Exemplo do Câncer no Cérebro: 








Interpretando esses valores, para o caso do medicamento que previne ataque cardíaco, teremos de tratar corretamente 4 pacientes para que 1 receba o benefício de evitar o evento cardíaco. Ou seja, os outros 3 pacientes não recebem NENHUM benefício com esse tratamento. Interessante observar que essa droga, mesmo com 3 pessoas não se beneficiando em nada pelo seu uso, tem valor de NNT muito menor que a média dos medicamentos de verdade. Normalmente os NNTs dos melhores medicamentos que temos atualmente, quando comparados com placebo, são maiores. Significando que sempre estamos tratando muitos, para poucos receberem o benefício. Agora, e o caso da droga para prevenir câncer no cérebro? Precisamos tratar 400 para que 1 receba o benefício. 399 pessoas não se beneficiam em nada! O leitor pode até achar justo ambos os valores de benefício, afinal de contas o desfecho – ataque cardíaco ou câncer no cérebro nos próximos 365 dias – nos dois casos são bem dramáticos, podendo levar os pacientes a morte. Entretanto, esse raciocínio só seria válido se não houvesse nenhum efeito colateral. Mas como sabemos, TODOS medicamentos tem alguma reação adversa, isso sem falar do seu custo. Foi pensando em quantificar o dano de um efeito colateral que se criou a variável Número Necessário para causar Dano (NND, ou NNH em inglês).
 A ideia é bem semelhante, o NND explicita a quantidade de pessoas tratadas que geram 1 efeito danoso. Exemplo: um estudo avaliou um grupo de pessoas sujeitas a uma infecção bacteriana. Quando avaliados os efeitos colaterais, os pesquisadores observaram que 20% dos pacientes que tomaram o antibiótico, tiveram diarreia. Em contra partida, dos que não tomaram o medicamento, 10% apenas tiveram diarreia. Se observarmos novamente o RR para essa droga, teremos:





, ou seja, seu risco relativo de desenvolver uma diarreia como efeito colateral dobra.


No entanto, observando o valor de Risco Absoluto, teremos:
Da mesma maneira, podemos calcular o NND:






, ou seja, a cada 10 pacientes que tratamos com o antibiótico, 1 terá diarreia.


Para exemplificar com valores reais de NNT, vamos analisar o índice para o uso de Aspirina na prevenção de um primeiro evento cardioisquêmico (ataque cardíaco) ou encefaloisquêmico (AVE). Em uma meta-análise publicada na revista Lancet em 2009, correspondendo ao melhor estudo sobre o assunto até o momento, foram analisados pacientes que nunca tiveram eventos cardiovasculares, mas que possuíam pelo menos um fator de risco para doença cardíaca como hipertensão arterial sistêmica. Chegaram a conclusão que, no caso de uso de aspirina em pacientes que nunca tiveram eventos vasculares prévios, o NNT=1667. Isso mesmo: para 1 única pessoa se beneficiar com a prevenção do evento cardiovascular, este que se beneficiou e mais 1666 indivíduos deverão tomar 1 comprimido de aspirina por dia durante 1 ano inteiro! Pensando nesse valor de benefício, qual o efeito colateral mais evidente do uso da aspirina? Sangramentos espontâneos! Dessa maneira, a pergunta que fica é: vale a pena tratar tantas pessoas que nunca tiveram qualquer evento vascular? É provável que tendo este valor de NNT para aspirina em mente, uma pessoa decida discutir melhor com seu médico se de fato vale a pena iniciar a terapêutica com o tal fármaco.
Uma ponderação importante é na verdade um alerta: quando estiverem interessados em ler um estudo na íntegra, atentem sempre para o escopo de pacientes do estudo. Este tipo de informação costuma ser encontrada na parte que o autor do trabalho descreve a Metodologia (sabidamente a parte mais importante de todo relato de pesquisa). No caso do nosso artigo do The Lancet, apesar de terem pelo menos um fator de risco para doença cardíaca (por exemplo, Hipertesão Arterial Sistêmica), escolheram APENAS aqueles que não tiveram nenhum evento cardíaco prévio. Não torçam o nariz quando virem prescrições de aspirina para familiares, eles podem ter tido algum evento cardiovascular prévio e você nunca soube. Para este escopo de pacientes com evento cardiovascular comprovado, que foram hospitalizados por tal motivo, o estudo ISIS-2 chegou a um NNT de 42 na prevenção de morte por Infarto Agudo do Miocárdio um mês após internação. Significando que, para 41 pacientes que tomaram diariamente e não se beneficiam em nada, apenas 1 tem o efeito de prevenção esperado no intervalo de tempo considerado no estudo (ISIS-2).
Através desses índices (RA, RR, NNT, NND) e dos exemplos citados, pode-se concluir (i) tratamos prescritos compreendem, de partida, uma margem de pessoas que não serão beneficiadas com ele, notadamente em doenças crônicas, quanto mais a alteração apresentada por um paciente for próxima do limite de definição de normalidade, menor será o benefício; (ii) produtores de medicamentos, ou mesmo pesquisadores mal intencionados podem informar um risco relativo que impressiona mais que o risco absoluto de fato, o que eventualmente leva a consequências como o investimento de grandes quantias de dinheiro em tratamentos pouco efetivos ou mesmo a efeitos colaterais graves.
 Vale a pena pensar sobre as possibilidades de tratamento existentes e discuti-las com o profissional médico. Peça para que ele mostre as possibilidades existentes a você e quais os riscos dos vários tratamentos. Assim, você terá participação na decisão de seu tratamento e poderá exercer uma autonomia consciente e esclarecida sobre seu corpo e sua saúde.

Referências
  1. Antithrombotic Trialists’ (ATT) Collaboration. (2009). Aspirin in the primary and secondary prevention of vascular disease: collaborative meta-analysis of individual participant data from randomised trials. Lancet, 373(9678), 1849–1860.
  2. ISIS-2 (Second international study of infarct survival) Collaborative group, randomised trial of intravenous streptokinase, oral aspirin, both, or neither among 17.187 cases of suspected acute myocardial infarction: ISIS-2, The Lancet, Volume 332, Issue 8607, 13 August 1988, Pages 349-360, ISSN 0140-6736.
"Este texto de divulgação foi escrito por Ícaro Salerno Fernandes, bacharel em Física e estudante de medicina, e publicado neste blog em março de 2016. Copiar ou reproduzir parte ou o todo do texto sem citar a fonte original constitui plágio e pode ser punido por lei".